quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Muito controle, pouca educação

Beatriz Rey da Revista Educação - Edição 153


Nunca se falou tanto na parceria entre escola e família. Mas, ao contrário dos discursos, as relações mostram desconfiança mútua.


Imagine um mundo sem adultos, em que todas as decisões são tomadas por crianças. Como seria viver sem pais ou professores? A rede de televisão britânica BBC resolveu investigar: produziu o reality show Esqueceram de nós - A vila das crianças, programa que confinou crianças de 8 a 11 anos por duas semanas em uma espécie de vila. Em casas separadas, meninos e meninas tentaram conviver (ou sobreviver) sob a observação contínua dos pais - interferências só seriam feitas caso a saúde das crianças fosse colocada em risco. No começo do segundo dia, o caos reinava nas duas casas. De um lado, os meninos não conseguiam fazer uma simples refeição: Sid, de 9 anos, come macarrão cru porque não consegue esquentar uma panela de água. Do outro, as meninas entram em pé de guerra quando a competição feminina fala mais alto e não há adultos para mediar as relações. "É como viver um pesadelo", chora uma menina. "Pensei que fosse durar, mas não se passou nem um dia e já estou chorando", diz outra.


Quando assistiu ao programa, a psicóloga e consultora educacional Rosely Sayão ficou assustada. O que mais a incomodou não foi só o abandono extremo ao qual aquelas crianças foram submetidas - um retrato fiel do que acontece no mundo contemporâneo -, mas também a constatação de que o aprendizado hoje está nas mãos das crianças, e não dos adultos. "Um menino quis sair e a mãe disse: 'não, você vai ficar porque é a sua chance de aprender a cuidar de você e das suas coisas'", conta Rosely. Pode parecer contraditório, mas no momento em que mais se prega o diálogo entre as instituições familiar e escolar, constata-se que a criança nunca esteve tão sozinha.


A família está insegura: como lidar, além da educação familiar, no auxílio da aprendizagem escolar, sendo que o tempo é escasso e os filhos muito indisciplinados? Com as novas configurações familiares, grande número de instituições escolares tenta entender quais papéis são seus e se vê obrigada (ou não, em alguns casos) a repensar sua atuação. A famosa parceria entre as duas instituições pode até acontecer na prática, mas os papéis de ambas não estão claros para os professores, educadores, diretores, pais, especialistas ou psicólogos. Enquanto o mundo adulto experimenta daqui e tateia dali, resta às crianças conviver com sua ausência efetiva, em casa e na escola.


"A divisão de trabalhos entre escola e família está embaralhada. O fato de que esses dois territórios não têm fronteiras claras ocasiona tanta tensão", diz Maria Alice Nogueira, coordenadora do Observatório Sociológico Família-Escola da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na escola particular, o pai que paga a mensalidade se vê muitas vezes no direito de cobrar e de exigir mais da escola. Esse é um dos motivos pelos quais Julio Groppa Aquino, professor do Departamento de História e Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da USP (Feusp), considera que a guerra entre as duas instituições no âmbito privado acontece na surdina. "Os professores são empregados da família e são tratados como tal. Isso ata a possibilidade de ação e gera tensão", diagnostica. Para Rosely, o conflito não é tão quieto como parece. Apesar de na superfície ele funcionar sob os moldes da gentileza, quando a tensão explode, os envolvidos mostram seu tom real, que é bélico. "Quando a mãe está em casa e o filho fala que tem uma lição e precisa de ajuda, ela xinga a professora. Quando o aluno está na escola e se comporta mal, o professor diz que aquela mãe não sabe o que faz. Não há respeito mútuo", pontua.


Na escola pública, a situação se inverte. Muitas vezes com escolaridade média baixa, os pais se sentem desencorajados ou temerosos de participar da vida escolar dos filhos. Quando a relação acontece, forçada por algum problema disciplinar, é sempre tensa ou truncada (leia mais nas páginas 30 e 31). Mas isso não significa que ele dê menos importância à escola. "Não há pai de classe popular que não fale para seu filho estudar para ter um futuro melhor. O problema é que eles têm poucas condições econômicas e culturais para colocar isso em prática", lembra Maria Alice.


Pessoa e cidadão

A relação entre escola e família passa por um conflito de funções sociais. Até a década de 50, a transmissão de valores era papel da família, que representava o ambiente privado. O conhecimento era responsabilidade da escola. "A família transforma o filhote da raça humana em pessoa. A escola transforma a pessoa em cidadão", resume Rosely.


Dessa divisão clara, passou-se a uma zona de névoa, em que as atribuições não estão definidas. Um exemplo: quando o aluno apresenta um problema de comportamento em sala de aula, quem resolve? A escola, que deve ensinar a disciplina em sala de aula, ou os pais, em tese responsáveis pela transmissão de valores do que deveria ser um comportamento socialmente adequado? "É uma espécie de disputa geopolítica. Menos da responsabilidade sobre o educar e mais da prerrogativa, de quem se arroga o direito de dar a palavra final", afirma Groppa Aquino.


Há dados que apontam o crescimento da investida familiar em educação. Uma pesquisa realizada recentemente pelo movimento Todos pela Educação em parceria com a Fundação SM mostrou que 80% dos pais entrevistados estão atentos para que os filhos não faltem às aulas ou se atrasem, além de acompanhar sempre as suas notas. Mais de 50% dos entrevistados impõe horários para que o filho estude. Foram ouvidos 1.350 pais em regiões metropolitanas e no interior do país de todas as classes socioeconômicas.


Muito dessa postura vem das diversas correntes que atestam que uma inação nesse sentido tem efeitos negativos no comportamento dos filhos (o que é geralmente associado ao desempenho escolar). A Universidade Federal do Paraná realizou um estudo com 3 mil crianças em 2005 e chegou a quatro perfis de pais: negligentes, participativos, permissivos e autoritários. No caso dos pais negligentes, que raramente dedicam uma parte do dia ao filho, os efeitos são nocivos: 56% dos filhos apresentavam sinais de depressão, 73% tinham indícios de estresse e apenas 6% têm boa desenvoltura social.


No colégio Einstein, em São Paulo, as consequências benéficas da participação familiar foram percebidas há quatro anos pela diretora e coordenadora pedagógica Raquel Burmesteir. "Quando o pai se interessa, cobramos: olha, está mais difícil aqui ou ali. Ele pontua em casa e nós aqui. A criança se conscientiza do que realmente precisa", conta Raquel. "A escola não consegue estar sozinha e o pai também não. É um tripé que envolve o aluno", diz.


Rosely Sayão toma por antidemocrática a associação entre o desempenho do aluno e a participação dos pais. "Consideramos a família do aluno para que ele tenha possibilidade. É absolutamente infantilizador. E se ele entrar na escola e construir um processo de autonomia?", questiona. Na mesma linha, Groppa Aquino não vê como a participação familiar pode ter impacto no desempenho do aluno. "Essa associação se deve à entrada do discurso psi dentro da escola. É a história de ver a criança como um todo. Quando a gente faz isso, esquece do aluno, que é o que interessa à escola", alerta.


Mesmo quando se esboça algum tipo de definição sobre o papel da família, ainda não há clareza definitiva. Cristina Guerra é mãe de Gabriel, 15 anos, que cursa o 9º ano do ensino fundamental. Para ela, o trabalho da família deve ser acompanhar a educação escolar - a escola deve chamar o pai quando achar necessário. Mas sua lista de "acompanhamento" é extensa. "Acompanho lição de casa, quero saber como foi a rotina na sala de aula, como está o comportamento nas atividades, no recreio, na educação física, tudo. A rotina na escola tem que ver com a formação da pessoa", conta.


O rei da casa

Há um traço da família contemporânea que se ressalta quando o assunto é a participação familiar na escola. A partir do momento em que o filho passa a ser o centro da família (leia texto nas páginas 34 e 35), há a necessidade de que ele seja perfeito. "É um ideal de consumo, um pacote de felicidade. É como se você quisesse garantir uma relação afetiva duradoura, pelo menos a do filho, já que o casamento não é", lembra Rosely. Extrapolando o relato de Cristina, há pais que trabalham o dia todo e passam pouco tempo com os filhos. Isso cria uma ausência de disponibilidade (e não do tempo cronológico, como define a psicóloga), o que os leva a adotar uma postura permissiva: vou fazer tudo o que meu filho quer. Além disso, a juventude hoje não é mais uma faixa etária, mas um estilo de vida. "É por isso que tantos pais esquecem os filhos no carro e na escola. A mirada principal é a própria vida", aponta.


Geralmente, além das reuniões de pais, as escolas abrem espaço para encontros individuais com os pais, que acontecem pela chamada de um ou de outro. De volta ao início do texto, quando o aluno tem um problema de comportamento, por exemplo, os pais podem ser chamados. Até os anos 50, essa convocação não era comum. Foi então que uma série de pesquisas internacionais apontou o peso da origem social sobre os destinos escolares e o Brasil adotou esse modelo mais próximo de relação família-escola. O contexto histórico leva a uma pergunta: como os professores lidavam com a falta de disciplina antigamente? Há quem diga que, como a criança tinha na rua um espaço primário de socialização, o grau de maturidade era maior quando ela chegava à escola.


O próprio processo de socialização da família era mais sofisticado, já que contava com a participação de mais membros (hoje, a relação central é pai-filho). Mas havia também um senso de autoridade muito grande. "As crianças se relacionavam obedecendo cegamente a alguns princípios. O senso de autoridade mudou na sociedade. É uma questão que a escola se recusa a assumir. Se há um fenômeno chamado bullying acontecendo é porque ela se recusa a enxergar que isso, nesse mundo que mudou, faz parte da responsabilidade dela", opina Rosely.


O problema é a construção desse senso de autoridade dentro da sala de aula. Para elaborar o estudo Trabalho docente e saúde: o caso dos professores da segunda fase do ensino fundamental, os pesquisadores Maria do Socorro Sales Mariano e Hélder Pordeus Muniz consultaram professores de uma escola de segundo ciclo de ensino fundamental em João Pessoa (PB). O chamado "domínio da turma" é associado à existência de uma especialização técnica em relação à disciplina que lecionam, ao investimento em qualificação profissional e à organização do conteúdo que será exposto em sala de aula. "O desempenho na exposição dos conteúdos em sala e a relação construída entre professora e aluno são elementos igualmente pertinentes para se ter domínio da turma. Ter esse domínio significa menos angústia e maior controle da situação em sala de aula", concluem os pesquisadores. Obviamente, esta é apenas uma das variáveis em jogo, mas, sem dúvida, ela ajuda a determinar a postura do professor em sala.


Ausências e compensações

Muitos educadores escolares, por sua vez, creem ser obrigados a assumir tarefas que não estão sendo feitas pela família. É comum que pais se dirijam a professores e diretores com dúvidas sobre a educação de seus filhos. Em uma palestra sobre a passagem do ensino fundamental para o médio no Colégio XII de Outubro, Marcos Ercíbio Couto, pai de Letícia, 14, e João Marcos, 10, mostrou-se angustiado: até onde nós, pais, devemos ir, já que hoje os filhos controlam a situação? Marcos tem dificuldade de falar não para os filhos, não por querer protegê-los, mas porque o acesso fácil à informação deixou o poder argumentativo das crianças mais incisivo. "Há pais que não falam não para compensar a ausência dentro de casa. E então minha filha vê colegas que não sabem receber não e me diz: por que temos uma família com essas coisas antigas, pai? Minha colega não é assim", conta.


Uma das coisas que a família teria deixado de fazer é a educação familiar, que envolve a transmissão de valores que norteiam a convivência do indivíduo na sociedade. "A criança está vindo para a escola sem alguns elementos. Por exemplo, elas são mais individualistas na maneira de se comportar", diz Esther Carvalho, diretora do Colégio Rio Branco. Mas até que ponto o próprio individualismo não seria um valor contemporâneo, como a competição e o consumo? A partir desse questionamento, Rosely Sayão diz que as crianças chegam, sim, com valores na escola - só não são aqueles que se deseja.


Aqui, a ideia de abandono é reforçada: se os pais já trabalham com um ideal de filho, a escola pensa o aluno da mesma maneira. "É uma ótima parceria: ninguém olha a criança como de fato ela é. Assim, a escola não se sente desafiada a desenvolver práticas educativas que aprimorem seu desenvolvimento", afirma a psicóloga. Ana Maria Matrandonakis, coordenadora de ensino fundamental 1 do Colégio XII de Outubro, vai além: a maioria das famílias não dá conta da formação inicial e não consegue acompanhar os filhos, mas também não acredita no que a escola diz. "Quando acontece um conflito na escola, nós somos os culpados. Os pais estão sempre um pouco bravos porque temos de resolver um problema pontual. O filho dele não tem problemas", diz. Aqui é preciso fazer uma distinção importante e que é unânime entre os especialistas: quando o professor reclama do aluno para o pai, está evocando a face estudantil daquele indivíduo. "Não é o mesmo sujeito que está lá. O filho pode ser uma coisa, mas o aluno da professora é outra", lembra Groppa Aquino.


Separar ou juntar?

Muitas das angústias relacionadas ao tema são provenientes das mudanças socioeconômicas e culturais do mundo contemporâneo. A fugacidade, as relações superficiais, o consumismo e o individualismo ainda são questões em aberto para a sociedade. Originalmente, a família é lugar do singular, do afeto. Em contrapartida, a escola é lugar do "mais um": é ali que as relações sociais se desenvolvem. Quando esses dois mundos devem se encontrar? Aliás, eles devem se encontrar? Ou o que é da escola, à escola? As opiniões são diversificadas.


Aliança inviável

Julio Groppa Aquino faz a voz dos que aceitam a inviabilidade da parceria entre as duas instituições. Para ele, quando os pais não participam, a escola reclama. E quando participam, reclama também. "Só chamamos os pais na hora em que o bicho pega. Ou nas festinhas insossas. Na escola privada, chamamos para mostrar que o dinheiro está valendo. Na pública, para responsabilizarmos os pais pela parte pedagógica. Só tem uma saída: não participar", defende.


A professora Maria Alice Nogueira, da UFMG, vê uma relação de mão dupla: se a escola está procurando a família, o contrário também vale. "Não posso dizer que minha mãe se inteirava do que eu estava aprendendo em geografia. Isso, para ela, era coisa da escola, hoje não é mais. É como se a família pensasse que a escola é muito importante para ficar só na mão do professor", aponta. Assim, a família de classe média exige cada vez mais da escola, que, sozinha, não consegue executar sua tarefa. Cabe à escola saber, por exemplo, qual é o momento de dizer não aos pais. "É importante que a escola tenha clareza sobre a sua proposta, para que o pai também tenha sobre a escola que quer para o filho dele", opina Adriana Silveira Garcia, diretora do Colégio XII de Outubro.


Além de restabelecer seus pressupostos, a escola deve ver a função educativa de forma ampla. Educar não é uma função apenas pedagógica, mas também ética e política, pois o que se quer, no final do processo, é abrir as portas do mundo público às crianças. Nessa linha, os educadores precisam descobrir até onde seus alunos podem ir, quais são os ritmos de aprendizagem, o quanto pode ser ensinado. "É preciso olhar para esse mundo e pensar qual projeto desenvolver para que as crianças não sejam fatalidades do destino social. A escola precisa ter uma utopia. Caso contrário, não há sentido em sua existência", lembra Rosely. Ela vislumbra uma possibilidade de acomodação de funções entre escola e família. O primeiro passo seria a escola (pública e privada) parar de atender os pais como clientes e de querer alunos ideais e homogeneidade. Em contrapartida, os pais precisariam esquecer a formação escolar do filho.


"É possível um diálogo, mas que tenha como foco principal a educação da criança, e não do 'meu filho', do 'meu aluno'. Deveriam se reunir para dialogar a respeito do projeto que a escola pratica com as crianças", opina. O importante é não perder de vista o sujeito, cuja maturidade de aprender os conteúdos e as coisas da vida por conta própria está se constituindo. No reality show da BBC, uma menina, aos prantos e molhada, tentava mediar um conflito provocado pelo excesso do uso de armas de água entre o grupo. "Precisamos de um adulto que nos diga quem deve ficar aqui e quem deve sair!", gritou. A famigerada parceria entre escola e família pode parecer incerta, mas a relação entre o mundo adulto e o infantil é cada vez mais necessária.


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